terça-feira, 20 de julho de 2010


Título Original: É Proibido Fumar (Brasil, 2009)
Direção: Anna Muylaert
Roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Glória Pires, Paulo Miklos, Marisa Orth





Oito anos. Este é o hiato que separa "É Proibido Fumar" do primeiro longa-metragem da paulistana Anna Muylaert, o mordaz "Durval Discos". Se o primeiro foi sucesso de público e crítica, o segundo não ficou atrás.

Glória Pires é Baby, uma professora de música que preenche seus dias monótonos entre aulas de violão e discussões em família, e tem como fiel companheiro de noites e dias solitários o maço de cigarros que a conforta. Quando o apartamento ao lado é alugado para Max, um cantor de churrascaria interpretado por Paulo Miklos, os dois iniciam um relacionamento que rapidamente transforma a personalidade de Baby. O desejo de se relacionar faz com que Baby se diminua e se torne mais contida, fazendo esforços sobre-humanos para cortar o hábito nefasto e ser a parceira ideal para Max. É fácil criar empatia com Baby nos primeiros minutos, graças a uma personagem bem construída, verossímil e delicada - e pelo cuidado da excepcional direção de arte ao construir seu apartamento - é através dele que entendemos as nuances de seu comportamento.

Em seu papel menos comercial no cinema, Glória Pires mostra que ainda é a atriz consistente que vive no imaginário de mais de uma geração brasileira: são quarenta anos de uma carreira impecável, porém pautada principalmente por telenovelas e por filmes menos pretensiosos e mais acessíveis ao grande público, como a franquia de Daniel Filho "Se Eu Fosse Você". A mesma atriz responsável pela maior bilheteria da história do cinema nacional é também capaz de desempenhar papéis densos e humanos.

"É Proibido Fumar" é uma crônica suburbana do cotidiano e seu grande trunfo reside nos diálogos impecáveis - simples mas verdadeiros, que mostram que a diretora e também roteirista entende seus personagens, conhece seu dia-a-dia e vive suas emoções - detalhes que o espectador talvez não perceba conscientemente mas que são a essência de roteiros que funcionam. O único deslize talvez tenha sido a inssossa ponta da roqueira Pitty, logo no início do filme, em uma cena que não serve a propósito algum - a não ser talvez o de dizer que Pitty não sabe atuar. A diretora já usou o mesmo subterfúgio em Durval Discos, quando Rita Lee faz uma pequena aparição como cliente esquizofrênica da loja de discos - mas a diva do rock brasileiro nao precisa de motivos para estar ali - já Pitty...melhor nem comparar.

Mais uma vez Anna Muylaert faz da música uma personagem central em seus filmes - ou no caso, quase que uma narradora, como na cena em que a Ópera "Carmem", de Bizet, funciona para dar ritmo e cadência a um engarrafamento no trânsito. Em Durval Discos o personagem principal vivia e respirava música, em "É Proibido Fumar" são dois protagonistas pautados pelo som e por referências saudosistas da MPB, e Chico Buarque e Jorge Ben são homenageados do começo ao fim, inclusive no figurino da atriz. Os dois grandes mestres inclusive servem de contraponto aos dois amantes: enquanto uma é sensível e possui alma romântica, o outro é expansivo e despreocupado - e a química é fulminante.

Temos aqui uma grande diretora que nos presenteia com um filme que não é comédia, mas nos faz rir - não é drama, mas é tocante - e não é blockbuster, mas já nasceu memorável.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Se Qualquer Coisa Fizesse Sentido




Título Original: Alice in Wonderland (EUA, 2010)
Direção: Tim Burton
Roteiro: Linda Wolverton
Elenco: Johnny Depp (Chapeleiro Maluco)
Mia Wasikowska (Alice)
Anne Hathaway (Rainha Branca)
Helena Bonham-Carter (Rainha Vermelha)

Conhecer o mundo fantástico e as cores que Tim Burton criaria para a obra-prima de Lewis Carroll foi sem dúvida a maior expectativa cinematográfica desse ano. Então lá fui eu, cheia de boa vontade e completamente nerd, ver a primeira sessão de Alice no Imax em Curitiba. Sei que não sou sozinha, Alice já começou como a maior abertura da história do cinema, ganhando até mesmo do rei das bilheterias James Cameron. A cada semana um novo filme “é o maior Box Office da história”, ou no caso de Alice, a maior abertura - reflexo de campanhas maciças na internet e das lindas imagens divulgadas nas semanas que antecederam a estréia, que deixaram todos com os olhos cheios como diria a protagonista, “mais e mais curiosos, curiosíssimos’.

Sou obrigada a apontar antes de qualquer coisa que me diverti horrores – sou uma das últimas remanescentes da idade da pedra que ainda esticam a mão para alcançar os insetos que voam em 3D, e entrar no País das Maravilhas é uma viagem onírica e surreal belíssima. O filme é visualmente lindo e arrebatador.

Em muitos momentos “Alice” se parecer demais com uma franquia de Project Runway, o reality show preferido de dez entre dez antenados e descolados. Os vestidos de Alice tem de ser reajustados a cada vez que ela aumenta ou diminui de tamanho, e cada novo figurino parece saído diretamente de uma passarela de Milão.

Apesar da impecável parte visual, Alice de Tim Burton não é o filme que gostaríamos de ter visto. Pra começar, diretor e roteirista decidiram tomar inúmeras licenças poéticas e ao invés de adaptar a história que dá nome ao filme, optaram por uma miscelânea deste e de “Alice Através do Espelho’, misturando personagens e situações. Também transformaram a pequena Alice em uma jovem mulher prestes a se casar, o que é totalmente compreensível em tempos de escândalos na igreja católica e tudo o mais. O próprio Lewis Carroll é ate hoje visto como um sujeito que gostava um pouco demais das infantes, visto as fotos em poses sensualíssimas para a época que o reverendo Anglicano (coincidência?) costumava tirar das filhas de seus amigos.

A história tem um apelo irrestível. “Alice no País das Maravilhas” e sua continuação “Através do Espelho” são grandes obras-primas que já nasceram clássicos pelo gênio infinito de Lewis Carroll. O seu uso das palavras, os neologismos e os jogos matemáticos que inventava foram inspiradores de grandes autores da literatura fantástica como Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Márquez. O que acontece é que Alice é um romance tão forte e carregado de símbolos que até mesmo quem nunca leu os livros percebe de forma inconsciente que existe ali um desperdício de história – uma narrativa rica que foi reduzida a uma luta entre o bem o mal com final apoteótico de Alice travestida com uma reluzente armadura prateada – onde já não se sabia se estávamos vendo Alice, Narnia ou O Senhor dos Anéis. Aliás, essa cena pareceu cair muito bem já que era feriado do dia de São Jorge.

Tim Burton tem escorregado com certa recorrência no seu estilo bizarro de ser. A formula apesar de genial se mostra cansada. O adjetivo mais usado para descrever Tim Burton é “sombrio”, porém não é uma mera gelatina azul e fotografia escurecida que tornam um roteiro mais denso e a heroína do filme é o maior exemplo disso. Já faz algum tempo que não se vê algo surpreendente como Edward Mãos de Tesoura ou Beetlejuice, esses sim memoráveis e inesquecíveis. Tim, por favor volte aos roteiros originais!!

O mesmo não se pode dizer de Helena Bonham-Carter que tem atuado em praticamente todos os últimos filmes do diretor. Ela é quase tão esquisita quanto seu marido e empresta qualidades hilárias para a Rainha Vermelha, papel que parece ter sido feito para ela. Ela faz soar natural até uma fala como “adoro uma barriga de porco quentinha para meus pés cansados!” Helena é uma dessas atrizes difíceis de se rotular e encaixar num padrão e que ofusca totalmente a contrapartida branca de Anne Hathaway. A Rainha Branca poderia estar em qualquer um dos filmes de fantasia lançados nos últimos anos e não saberíamos a diferença. Ela vive num lindo palácio alvo de neve sem fim, e só isso poderia explicar o roxo asfixiante dos seus lábios e unhas. Uma legítima princesa da Disney que parece estar no filme errado. Claro que Johnny Depp não faz feio como o Chapeleiro Maluco, que decididamente é o Alter Ego do diretor. Sim, ele está caricato e cheio de tiques e trejeitos, mas ainda assim mais convincente que o Willy Wonka infantilizado de 2005.

Ainda quero ver Alice mais uma vez, em 3D, é claro. É diversão honesta e garantida, mas ainda não estamos todos malucos como o chapeleiro para dizer que este é o filme definitivo de Tim Burton, e cortem a minha cabeça se for a definitiva versão cinematográfica de Lewis Carroll.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Código Desconhecido



Título Original: Code Inconnu - Récit incomplet de divers voyages (França, 2000)
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke


“Código Desconhecido” é um filme que foge de qualquer narrativa convencional. Na realidade, um dos grandes inovadores da última década. Demoro a lembrar de um filme recente que se proponha tão corajosamente a quebrar toda e qualquer estrutura narrativa com tanta competência.
Este é um filme onde não conseguimos identificar um “presente narrativo”, ou seja, um tempo definido onde transcorre a ação do filme, e assumir essa postura de forma tão pontual, definitivamente não é para qualquer aventureiro.

“Código Desconhecido” fala da convergência de cinco personagens que são ligados por um incidente aparentemente banal e impensado, cuja ação decorre em pouco menos de cinco minutos, mas que traz profundas conseqüências nas vidas dos envolvidos. Embora seus caminhos se cruzem, em momento algum eles realmente enxergam uns aos outros, e o diretor Michael Haneke (“Caché” , “A Professora de Piano”) desenha assim sua metáfora sobre o distanciamento nas relações humanas.

Juliette Binoche é Anne, uma atriz de cinema em Paris, casada com o ausente e distante fotógrafo Georges, que viaja para o Kosovo para retratar os horrores da guerra através de suas lentes. Jean, irmão adolescente de Georges, chega na casa de Anne em Paris fungindo da casa do pai. Lá, acaba tendo um incidente com uma pedinte na rua, quando joga em seu colo um lanche comido pela metade.

Este incidente aparentemente banal tem o poder e a abrangêcia de transformar as vidas das pessoas envolvidas diretamente ou não, incluindo Anne, seu irmão Georges, seu pai, a pedinte romena que é deportada para seu país de origem e Amadou, descendente de imigrantes Africanos e professor de percussão para crianças surdas.

As trajetórias dos personagens são contadas de forma irregular e aparentemente aleatória. “Aparentemente”, pois não há nada de aleatório na escolha das construções. O tempo é desfragmentado, e assim em muitos momentos ficamos sem saber se o momento retratado vem em decorrência do incidente ou apenas levou nossos personagens até ele, o que torna “Código Desconhecido” um filme difícil para o público que tem a necessidade de um fechamento e de uma coerência linear. Não existe o fechamento desejado; há apenas o retrato de um estado humano. A falta de coerência linear e de narrativa convencional poderia sugerir para alguns espectadores que o filme carece de significado ou não diz a que veio, mas nada poderia ser mais injusto e longe da verdade. “Código Desconhecido” é repleto de significado em vários níveis. O esforço do espectador para assegurar uma continuidade, ainda que ilusória, apenas descaracteriza a experiência cinematográfica, que adquire nova qualidade ao abrirmos mão do controle e da necessidade de explicação.

É justamente através da descontinuidade e da fragmentação temporal que o diretor Michael Haneke consegue transitar desde os níveis mais próximos e pessoais do ser humano até a grande coletividade, passando por várias camadas de entendimento, que envolvem nacionalidade, idioma, cultura e características pessoais. Somente assim temos a dimensão das experiências que transformaram cada personagem no que eles realmente são.

Logo na primeira seqüência, temos um plano que, descobrimos mais tarde, poderia ser o resumo do filme todo: Uma criança gesticula e se expressa corporalmente, em um plano geral, aberto, contra um cenário absolutamente limpo e despido de qualquer elemento. Ela é surda e muda, e nos próximos planos, outras crianças surdas tentam adivinhar seus movimentos em um jogo de mímica.

A cada tentativa de acerto, uma negativa, e assim o filme todo parece transcorrer, sem haver em nenhum momento comunicação real entre os personagens. O plano é longo sem ser exagerado. Permite o tempo necessário para calmamente nos familiarizarmos com a pequena menina que ali se encontra. As crianças se comunicam através de gestos, mas impedidas de se expressar em linguagem formal. A surdez é apenas mais um elemento que impede nossa comunicação efetiva, e a primeira das perguntas mordazes lançadas por Michael Haneke sobre sua platéia.

“Código Desconhecido” trata de um adormecimento coletivo da sociedade, de um distanciamento e insensibilidade que apenas crescem à medida que ninguém mais olha para o próximo.

Superficialmente e numa análise rápida, um espectador poderia facilmente cair na armadilha de dizer que “Código Desconhecido” é um filme sobre o racismo, considerando algumas das cenas com Amadou, as dificuldades enfrentadas pela Romena expatriada, e o histórico xenófobo da França moderna, mas essa suposição seria por demais superficial. Na realidade, é uma história onde ninguém se toca, ninguém verdadeiramente se olha, se comunica ou enxerga o outro. Para toda e qualquer tentativa de conexão, uma recusa, como na cena com Amadou no restaurante, onde ele tenta se aproximar e beijar as mãos da sua acompanhante, que logo se distancia e inicia uma conversa banal. Os diálogos diretos entre os personagens quase sempre giram em torno de amenidades, evidenciando a impossibilidade de comunicação íntima e verdadeira.

As ações e as trajetórias dos personagens são interrompidos bruscamente por telas pretas e cortes súbitos. Os black-outs que cortam as narrativas nos passam a sensação de metáforas para a descontinuidade das relações. É provável que esta metáfora não tenha sido exatamente a imaginada pelo diretor, mas as interrupções súbitas ajudam a criar o clima de quebra que existe na vida, já que em muitos momentos eles acontecem exatamente, no ponto em que o espectador começa a se envolver com o personagem e sua história. É quando estamos no limiar dessa conexão que Haneke interrompe sua narrativa. Em determinados momentos, o corte preto vem antes mesmo que termine a ação do personagem.
Muitas das cenas terminam como começam - o próprio filme termina com uma última cena muito parecida com a primeira, num movimento circular que não causa estranheza. É a entrega a um puro exercício de apreciação.

Uso do Quadro e o Filme dentro do filme


Michael Haneke usa constantemente o espaço fora do quadro para acrescentar informações e elementos para o espectador; é o que acontece fora do quadro que cria a situação que vemos dentro. O diretor brinca facilmente com tudo aquilo que ouvimos, mas não vemos, com aquilo que vemos, mas não entendemos ou contextualizamos.

Através da personagem de Anne, que é atriz, somos apresentados a uma ficção dentro do filme, para depois permitir que sua câmera se confunda com a da história que há dentro da história. Este movimento é tão leve e fluido que não percebemos o momento em que isso acontece. É harmonioso e sutil, porem extremamente marcante.

Em todos os papéis que interpreta, Anne se encontra presa, confinada. Isso se reflete nas câmeras e em closes frontais – rosto em evidência, talvez em busca de sua verdadeira essência. Em determinados momentos, podemos apenas supor que ela está atuando, pois as câmeras são invisíveis. Embora nada na cena indique que esta é a vida real de Anne, nada indica que estamos no tempo presente.

Através das ações dos personagens, “Código’ permite a projeção do espectador, fazendo as vezes de uma tela em branco, pronta para ser preenchida com qualquer devaneio, sentimento, interpretação ou racionalização do espectador.

Em momento algum o diretor lança mão de trilha sonora para “Código Desconhecido”, a não ser para a cena final do filme. Ainda assim, é uma espécie de trilha diegética, transposta de uma cena com Amadou, fazendo uma das poucas conexões entre os personagens. Quando falamos em poucas conexões, na verdade, é apenas para evidenciar o caráter de distanciamento, pois embora sim, eles estejam intimamente conectados, quase todos os personagens parecem ignorar este fato.

Cadência e ritmo da percussão repetitiva de Amadou e seus alunos parecem marcar ainda mais o caráter mecânico dos personagens.

Li um comentário sobre o filme que expressa muito bem o mesmo sentimento que tive ao assistir o filme, que expressa essencialmente que embora o diretor não seja um novato, o que “Código Desconhecido” nos traz é algo completamente novo, com espírito jovem.

Não se sabe o que é real e não é dentro do filme, e honestamente, isso não faz a menor diferença. A mensagem atinge seu destinatário de forma clara e pungente. Pra o encerramento, novamente a criança, que no olhar atento de Michal Haneke pode ser um sinal de esperança, ou talvez não passar de um tremendo sarcasmo.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Corumbiara, de Vincent Carelli



Já se passou quase uma semana desde que o júri popular do 37º Festival de Cinema de Gramado, do qual participei, elegeu o documentário “Corumbiara’ como o melhor filme brasileiro do evento. Para nossa satisfação, Corumbiara também foi eleito o melhor filme pelo júri oficial, o que deixou a todos com a sensação de alma lavada, já que um trabalho como o que foi feito pelo indigenista Vincent Carelli ao longo de mais de vinte anos não poderia passar sem o devido reconhecimento.

Vamos ao que interessa; a história começa quando Carelli funda em 1987 o projeto “Vídeo nas Aldeias”, uma tentativa de colocar o audiovisual a serviço de temas políticos e sociais que envolviam indígenas de Rondônia. Ao longo de sua trajetória, ele entrou em contato com uma tribo isolada que falava uma língua considerada extinta, e descobre um massacre de praticamente uma aldeia inteira que havia ocorrido anos antes, deixando praticamente nenhum sobrevivente para contar a história – os que se salvaram, se isolaram ainda mais do contato com o homem branco, horrorizados com a selvageria perpetrada pelos verdadeiros “não-civilizados”.

Durante anos Carelli e sua equipe filmaram os primeiros contatos com os descendentes dos sobreviventes, as tentativas de aproximação, os esforços para traduzir a língua falada por eles e fez um extenso trabalho investigativo com o intuito de denunciar os responsáveis pelo massacre. Um trabalho feito de sangue, suor e muita coragem. Correu risco de prisão e risco de vida. Enfrentou a ira dos poderosos fazendeiros da região e a má vontade da mídia, que sonegou informações ao público e nunca deu o devido destaque às suas descobertas. O massacre fora denunciado – os culpados permanecem impunes, mas certamente mais escondidos depois do seu esforço incansável.

As qualidades cinematográficas de “Corumbiara” também são admiráveis: a montagem inteligente faz do filme muito mais que um documentário investigativo, mas um verdadeiro thriller de aventura, com picos de tensão nos momentos certos, como quando eles travam o primeiro contato com os índios ou quando eles cercam um índio isolado no meio da floresta durante horas, numa tentativa de se fazer um único e simples registro de sua imagem. Ele mesmo questiona o aspecto ético dessa tentativa, e toca fundo no coração do espectador, que neste momento está completamente envolvido com a narrativa.

Vincent faz a narrativa em tom extremamente pessoal e inclusive se coloca em frente às câmeras, além de usar um recurso extremamente criativo: quando encontra os índios pela primeira vez, o idioma que falavam era incompreensível, e junto com a equipe ficamos sem entender o que eles tentam arduamente expressar. Apenas quando especialistas são convocados para tentar decifrar o idioma e eles compreendem o que está sendo dito é que as legendas entram em quadro. Muito do filme é dedicado a mostrar o cotidiano dos índios, o tempo necessário para que o público crie empatia com os personagens dessa saga – essa ligação é essencial para nos trazer mais perto de seres humanos que são tão distantes do público em vários sentidos: geográfico, cultural, de linguagem. É com esse recurso, por exemplo, que entendemos que há uma linguagem universal: o riso.

Apesar de não ser o filme mais ovacionado durante a exibição, Corumbiara certamente teve o reconhecimento merecido – vi de perto muitas pessoas com lágrimas nos olhos, um comentário de um colega de júri expressou um sentimento geral: ele disse que ao apertar a mão de Vincent Carelli, as mesmas mãos que haviam tocado os indígenas, sentiu-se indiretamente ligado a todas as histórias de vida narradas no filme. É exatamente aí que vivenciamos de verdade aquilo que muitas vezes é dito da boca pra fora: somos (irremediavelmente, indubitavelmente) todos um.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A Palavra do Júri


Na última e derradeira ressaca pós-festival, reproduzo aqui minha matéria que foi publicada ontem, 18.18 .09 no Caderno G da Gazeta do Povo.

Há poucas semanas atrás, recebi a inesperada notícia da Gazeta do Povo.
Eu havia escrito uma crítica sobre o filme “Jogo de Cena” de Eduardo Coutinho, e meu texto foi escolhido entre todos os outros concorrentes.

Sim, eu iria para o Festival de Cinema de Gramado para integrar o corpo do júri popular. Não precisei de mais que alguns minutos para decidir. Fiz minhas malas e embarquei para os pampas, cheia de expectativa.

Ao chegar a Gramado debaixo de chuva torrencial, a primeira parada foi no pavilhão da Expogramado, onde tudo relativo ao festival se concentra; a organização, stands de universidades e empresas, salas para entrevistas coletivas. Toda a agitação era um prenúncio da semana que iniciava.

Conheci os outros membros do júri popular e a integração foi imediata. Éramos de diferentes estados do Brasil, representando grandes veículos como o Diário de Pernambuco, o jornal “a Tarde” da Bahia e o Estadão, de São Paulo. As idades variavam entre 18 a 57 anos, e incluíam profissões tão diversas quanto um arquiteto, um advogado, uma artesã, uma contadora e alguns estudantes. Todos nós fomos vencedores de concursos sobre cinema, e compartilhávamos a mesma paixão; a tela grande na sala escura. A intenção do júri popular é exatamente a de refletir essa diversidade entre os espectadores brasileiros.

O primeiro filme que assistimos foi ‘Quase um Tango” de Sérgio Silva. Assim que chegamos, recebemos a orientação expressa de manter absoluto sigilo em relação às nossas opiniões sobre os filmes e não emitir qualquer juízo de valor nem mesmo entre nós. A regra foi observada, embora com dificuldade, já que sair do cinema para jantar e comentar os filmes entre si é algo intrínseco à experiência. Assim fomos até o quarto dia do festival, quando pudemos conversar com mais liberdade sobre nossas opiniões. Alívio geral: estávamos praticamente em consenso em relação aos filmes exibidos até então.

Cada filme foi para nós uma surpresa, e aos poucos fomos desenvolvendo nosso olhar. Um destaque foi o filme Peruano “La Teta Assustada”, que já havia ganhado o Urso de Ouro em Berlim. “Teta assustada? E isso lá é nome para alguma coisa?”, alguém comentou.

O filme foi uma agradável surpresa. Encontramos uma história sensível com uma personagem profundamente complexa, que demorou a encontrar empatia com o público, mas que ao longo dos dias assumiu um lugar de destaque em nossos corações. O prêmio do júri popular acabou indo para LLuvia, da argentina Paula Hernández, mas não foi uma decisão imediata.

Já a deliberação para melhor longa-metragem nacional foi quase que unânime. O documentário Corumbiara emocionou a todos nós, contando o massacre de índios ocorrido na Gleba Corumbiara em Rondônia. O diretor Vincent Carelli exibiu ali a obra de uma vida, feita com suor, sangue, lágrimas e muita coragem. Lavamos a alma ao aplaudir de pé todos os prêmios que esta obra-prima ganhou na última noite.


A semana se passou entre muitas alegrias, experiências inéditas, festas, discussões de alto nível sobre a sétima arte. Ah, e não faltou todo o Glamour associado ao festival de Gramado. Passamos pelo tapete vermelho, conhecemos pessoas, fizemos amigos para sempre.

Os momentos que antecederam a partida foram cheios de nostalgia, alguma tristeza e profunda satisfação por reconhecermos a importância do prêmio oferecido pelo júri popular e nossa imensa responsabilidade como jurados. Agora amigos, de volta à vida real, onde festas, tapetes vermelhos e casas de Caras não fazem parte do dia-a-dia. Pelo menos até o ano que vem!

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Jogo de Cine


Título Original: Jogo de Cena (Brasil, 2007)
Direção: Eduardo Coutinho
Montagem: Jordana Berg



Caros leitores, eis o texto vencedor doconcurso da Gazeta do Povo e que está me levando a Gramado como membro do júri popular.

Jogo de Cena


Um anúncio de jornal procurando mulheres no Rio de Janeiro com uma história para contar. Um teatro vazio, uma cadeira no palco. Depoimentos sinceros, e interpretações de atrizes profissionais.

É com estes poucos elementos que Eduardo Coutinho, já consagrado como um dos maiores documentaristas do Brasil, constrói “Jogo de Cena”: uma intensa viagem emocional através do feminino.

No decorrer do filme, o espectador perde a noção de quem é a atriz e quem é a entrevistada voluntária que se dispõe a abrir sua alma e vulnerabilidades para estranhos – e isso não faz a menor diferença, já que o conteúdo humano está sempre lá. É um filme para ser apreciado e contemplado em estado de entrega, e uma vez que deixamos de tentar desvendar os segredos da arte da interpretação, somos levados em uma jornada pela psique e história humanas. E é aí, exatamente nesse momento, que Eduardo Coutinho subitamente nos chama de novo e nos lembra que estamos assistindo à interpretações profissionais, jogando e brincando o tempo inteiro com a imaginação de quem se deixou envolver pelos dramas contados. É claro que quando vemos as (impecáveis) interpretações de atrizes já marcadas na história do cinema e televisão brasileiros como Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra, fica difícil dissociar a figura que nos é tão familiar, mas seus depoimentos inspirados ao fim das interpretações nos trazem de volta ao tom que permeia “Jogo de Cena”.

Ao invés de problematizar o processo de realização daquilo que é formalmente considerado um filme documental, ele elegantemente soluciona a questão, mostrando que a linha tênue que divide fantasia e realidade pode ser encontrada em todo momento e em todo lugar, quando percebemos que a emoção das atrizes que interpretam os depoimentos é tão verdadeira como se aqueles eventos fizessem parte de sua própria história. Na verdade, é impossível não se identificar com os relatos, que de tão banais encontram reverberação profunda nas histórias de vida de todos os seres humanos. Não há pessoa neste mundo que não tenha perdido ou não vá perder alguém querido, e quase todos nós sabemos o que é viver ou se decepcionar com um grande amor.

Eduardo Coutinho nutre um profundo respeito por seus entrevistados, e é através de seus olhos que vemos o desfile da vida e dos arquétipos, as memórias afetivas, padrões familiares e as histórias de cada mulher, suas delicadezas, arestas, forças e fragilidades. Todas diferentes, e essencialmente, todas iguais.

sábado, 1 de agosto de 2009

Ensaio Sobre a Cegueira


Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness)
Brasil, Japão, Canadá, 2008 - 120 min
Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: Don McKellar, José Saramago (livro)
Elenco:
Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Danny Glover, Gael García Bernal



A expectativa que cercou o lançamento de “Ensaio Sobre a Cegueira” era justificada: José Saramago, Nobel de literatura filmado por Fernando Meirelles, um dos maiores cineastas brasileiros, com um currículo que inclui os aclamados “Cidade de Deus” e “O Jardineiro Fiel”.

Quando um motorista subitamente perde a visão em meio ao caótico trânsito de uma grande metrópole, no que ele classifica de uma “cegueira branca”, uma estranha epidemia se alastra rapidamente. O governo alarmado ordena que todos aqueles acometidos do mal sejam isolados e colocados em quarentena. Aqueles que tentam sair são imediatamente mortos, e quando o sistema começa a falhar a bestialidade humana aflora em sua expressão mais animalesca.

Em meio ao caos, sujeira, falta de comida e condições desumanas das alas onde os doentes são confinados, toda sorte de horrores acontece. Apenas uma pessoa pode enxergar: é a mulher do médico, arquétipo nítido daqueles que estão acordados em um mundo onde todos parecem estar dormindo, confrontada com sua impotência em um cenário de horror.

Meirelles deve ter perdido algumas noites de sono ao corajosamente se propor a passar para as telas um filme que era considerado impossível de ser filmado, mas competentemente reafirma Stanley Kubrick que disse que “se algo pode ser pensado ou escrito, pode ser filmado”, e reconstruir uma São Paulo devastada não é tarefa simples. Os planos da cidade são magníficos, com destaque para o Viaduto do Chá. Ao fundo, apenas desolação.

A parábola é uma metáfora óbvia para a idade das trevas em que a humanidade se encontra. Ao mesmo tempo em que vemos a humanidade alcançar inimagináveis avanços tecnológicos, temos o número inacreditável de um bilhão de pessoas passando fome no mundo, segundo o último relatório divulgado pela ONU. Ameaças de doenças e guerras espalham o medo nos países desenvolvidos, e a humanidade parece tão conformada quanto na própria idade média.

“Cegueira” é perturbador para as platéias porque sabemos que estamos a um passo do abismo, e que nossa única saída como espécie é aprendendo a confiar uns nos outros e saber estender a mão para o próximo. Nesse sentido, o filme é muito mais que uma imagem pessimista da humanidade. Ele mostra a solução.

Talvez para alguns, a cegueira branca seja a verdadeira luz que leva à redenção. Privados do seu sentido mais imediato de percepção do mundo externo, os homens são obrigados a olhar para dentro, e é instintivo lembrar do colega de Saramago no Nobel de literatura:

"Considero a vida humana como uma noite profunda e triste, que não se suportaria se, num ponto ou noutro, não rutilassem repentinos clarões, de uma luminosidade tão consoladora e maravilhosa que seus segundos podem apagar e justificar anos de escuridão” – Herman Hesse.